O que WhatsApp ensinou ao Facebook

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O que WhatsApp ensinou ao Facebook

Recentemente, aqui mesmo no blog, coloquei uma matéria sobre o caso do WhatsApp, e os problemas de privacidade, advindos da sua nova política de privacidade.

Dentro de um estado de direito, as pessoas são donas de sua identidade. Isto é um conceito básico, já velho conhecido de empresas, instituições e governos.

Sendo assim, a premissa natural de que as pessoas reagirão mal quando tiverem a percepção de estarem tendo seus direitos violados, não só é intuitivo, como também povoa inúmeros cursos e temas de graduação das áreas de Marketing, sem falar na área de Direito.

Então, uma simples decisão mal tomada ou mal conduzida, ou mesmo as duas coisas, transformou um case de sucesso em um dos maiores cases de erro de gestão de produto que vi ultimamente.

A grande pergunta hoje é: Por que uma empresa milionária comete um erro tão primário? O fato por si é tão bizarro, que chegou a inspirar as famosas teorias da conspiração, como jogadas de bolsa de valores,  de mercado, tentativas  de dumping, trusting e por aí vai.

Mas o fato é que após quase 60 dias do inicio desta confusão, o que se vê é tudo, menos um cenário que possa ser aproveitado pelo Facebook de forma positiva.

A situação

Cerca de 60 dia atrás o WhatsApp mudou sua política de privacidade, e dentre os requisitos e informações de sempre, a atenção voltou-se ao uso de dados da plataforma pela empresa mãe - Facebook e sua plataforma de rede social. (Veja a matéria completa em https://blog.anaccarati.com.br/2021/01/a-privacidade-e-o-caso-do-whatsapp.html).

E a cereja do bolo vem em forma de uma imposição onde o consumidor concorda com isto ou seu aplicativo será travado.

Até a publicação desta matéria a data limite do WhatsApp já foi adiada em 40 dias...

A reação

Imediatamente os profissionais de segurança de redes, e os usuários mais atentos encheram as redes sociais e mídias jornalísticas de todo tipo de críticas e análises com a mesma retórica: querem obrigar você a abrir mão dos seus dados. O problema é que o WhatsApp tornou-se uma ferramenta ampla de comunicação. E agora isto passou a ser um grande problema para quem hoje infelizmente tornou-se dependente de um produto.

Analisando

No meu entendimento, existe uma essência cara e extremamente rara a ser vista e aprendida em tudo isso. Não é todo dia que você tem a oportunidade de ver e analisar uma falha destas, em uma empresa tão grande. 

O vício de setor

Acho que tudo começa no vício de setor. Chamo de vício de setor, sempre que um dado segmento de mercado cria seus conceitos renomeados a partir de conceitos clássicos. O setor de tecnologia da informação por exemplo, no geral, não vê clientes, e sim usuários. Embora pareça pouca coisa, no fundo, esse vício de setor inverteu as setas: o cliente tem cara de quem manda no mercado e no produto, já o usuário parece mais com quem depende de um produto e passivamente usa-o da forma que aprouver ao desenvolvedor. 

A cultura organizacional

No pano de fundo desta história vem a cultura organizacional. Não podemos esquecer de como o Facebook nasceu. Em 2003, o estudante Mark Zuckerberg cria uma página chamada FaceMash. Ela compara fotos de estudantes da universidade e deixa você escolher a pessoa mais bonita entre duas. O negócio foi um sucesso, mas muita gente não curtiu e o site saiu do ar pouco tempo depois por usar a base de dados da instituição sem autorização. A universidade emitiu uma advertência e ele se desculpou. Detalhe: as fotos não eram autorizadas para esta finalidade. (https://www.tecmundo.com.br/mercado/132485-historia-facebook-maior-rede-social-do-mundo-video.htm)

 

O sopro divino

Por fim e não menos importante na nossa avaliação é o sopro divino. O que eu chamo de sopro divino é a percepção que algumas organizações têm de si próprias, que as levam a acreditar que tudo podem. Nada é proibido nem leva a resultados ruins. Neste diagnóstico sempre estão megaempresas, resolvendo seus problemas simplesmente ignorando o interesse de governos, sociedades , grupos de minorias ou quem quer que seja o empecilho aos seus objetivos. E sempre com a certeza de que nada de ruim pode acontecer.

 

A Conclusão

O que aconteceu com o WhatsApp na minha opinião, foi um conjunto destas três coisas. 

Em primeiro lugar, ao que parece, o WhatsApp estava para lançar  meios de pagamento pela plataforma. Isto implica em trafegar informações delicadas o que poderia ser muito mais fácil e barato na plataforma maior, o Facebook. Mas isto é só uma conjectura. O importante é que alguém, por algum motivo,  deve ter tido a idéia de simplesmente fazer o usuário abrir mão de seu direito de privacidade.

 

O resultado então foi um desastre de produto quase sem precedentes. O WhatsApp caiu do primeiro lugar em downloads na lojas de Apps ( Google e Apple) amargando hoje com um preocupante 5° lugar na última semana, atrás de concorrentes como Signal e Telegram ( que disputam o primeiro lugar) e de outros aplicativos como TikTok, e Discord.

 O WhatsApp tentou reagir ( https://canaltech.com.br/apps/whatsapp-tenta-explicar-novas-regras-de-privacidade-para-evitar-debandada-177266/ ) mas agora é tarde...

 É claro que um programa que chegou a deter 98% dos grupos familiares e de trabalho não cai assim da noite para o dia. 

 Mas o fato é que o Telegram, seu concorrente batido há anos, retorna dos esquecidos e bate recordes de inscritos. O concorrente mais seguro de todos o Signal, pela primeira vez aparece nas pesquisas chegando ao ponto de receber de Elon Musk, seu admirador mais famoso, uma vultuosa doação para incremento nos servidores, com o objetivo de abrigar milhões de novos usuários em poucos dias.

 

Então sim. Foi um desastre...

 

AS LIÇÕES  APRENDIDAS 

 Aqui para nós humildes mortais, resta as lições aprendidas com os erros alheios. 

 O cliente é o cliente e ele pode te fazer rico ou te deixar na rua da amargura. Não interessa como você o chame: usuário, parceiro, colaborador, terceiro, parte interessada ou habitante de Marte, o cliente deve ser ouvido e respeitado.

 Nenhuma instituição, ou qualquer organização tem sopros divinos ou superpoderes para poder fazer qualquer coisa. Existem leis e regras que devem ser, não minimamente atingidas, mas atingidas de forma plena. Esse é o tal do Complience. Caso contrário os problemas vão se acumulando até que a onda seja insuportável. E além disto uma certa dose de bom senso sempre ajuda. Antes de empresários ou executivos, somos todos Clientes.

Confesso que fiquei bem decepcionado com a liderança apresentada neste contexto. Uma questão básica de Liderança, é agir frente a desafios adaptativos. E para isso, a criatividade é a ferramenta. Neste caso, vi uma tentativa cega de superar um desafio, como resolver o problema de carregar 30 toneladas de carga em uma bicicleta, simplesmente revogando a lei da gravidade...

Além disto, ter lucro não significa invariavelmente esquecer conceitos de ética. Principalmente quando você lida com o cliente final. Tenho um bom amigo que ministra a cadeira de ética em uma universidade renomada. Ele está lá perdendo tempo? A questão ética está ligada a imagem que você quer ter no mercado. Quando uma organização acha que isto é irrelevante, está considerando consequentemente sua imagem irrelevante, ou no mínimo, menosprezando a capacidade das pessoas de enxergar.

O ponto aqui é que o WhatsApp estava no lugar certo na hora certa e virou um sucesso. Com tudo isto acontecendo, não me parece ter sido uma construção sólida de talentos criativos, e só não sofreu consequências devastadoras ainda por conta de seu tamanho e da dependência insalubre que as pessoas permitiram acontecer.

Mas parece que isto agora passa a ser questionável. O maior dano foi chamar a atenção das pessoas do quão ruim é depender de alguma coisa tão volátil e perder a confiança delas. E agora? Como lançar um produto de confiança, como meios de pagamento, depois de  tudo isso? 

Se o caso foi de , aos poucos, eliminar o mensageiro em prol da plataforma do Facebook, isto também foi desastroso. 

A  estratégia do WhatsApp agora é tentar deixar a poeira abaixar, contando com a falta de memória coletiva, ou em última análise, na dependência. 

Por fim acho que a principal lição de todas é respeito. Em nosso tempo as pessoas parecem estar se esquecendo deste conceito fundamental e que mistura-se ao próprio conceito de sociedade.

 Respeitar o cliente e o meio que você vive e cria seus negócios ainda é o maior truque. 😉


 


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